O cientista que ajudou a converter a China em superpotência
O cientista que ajudou a converter a China em superpotência após ser deportado pelos EUA. Em Xangai, na China, há um museu inteiro com 70 mil artefatos dedicados a um homem: o “cientista do povo” Qian Xuesen.

Nascimento em Hangzhou, a 11 de dezembro de 1911 falecimento, Pequim, 31 de outubro de 2009, foi um engenheiro chinês. Qian é o pai do programa espacial e de mísseis chinês.
Realizou trabalhos fundamentais para os programas espaciais e de mísseis dos Estados Unidos e da República Popular da China. Documentos históricos dos Estados Unidos normalmente referem-se a ele com a ortografia segundo a pronúncia de seu nome, Hsue-Shen Tsien ou H.S. Tsien. Durante a década de 1940 Qian foi um dos fundadores do Jet Propulsion Laboratory, no Instituto de Tecnologia da Califórnia, Durante a segunda ameaça vermelha nos Estados Unidos na década de 1950, o governo dos Estados Unidos acusou Qian de ter simpatias comunistas, e ele foi destituído de sua credencial de segurança em 1950. Qian então decidiu retornar à China, mas foi detido na Terminal Island próximo a Los Angeles. Apos passar 5 anos em prisão domiciliar virtual, Qian foi solto em 1955, em troca da repatriação de pilotos estadunidenses capturados durante a Guerra da Coreia. Notificado por autoridades estadunidenses que estava livre para partir, Qian retornou para a China em setembro de 1955, no navio de passageiros SS President Cleveland da American President Lines, via Hong Kong. Ele retornou a seu país para liderar o programa de foguetes chinês, e se tornou conhecido como o “pai dos foguetes chineses” (ou “rei dos foguetes”).
O asteroide 3763 Qianxuesen e a malfadada nave espacial Tsien do livro de ficção científica 2010: Odyssey Two portam o seu nome.

A pesquisa dele ajudou a desenvolver os foguetes que lançaram o primeiro satélite da China ao espaço e os mísseis que se tornaram parte do arsenal nuclear chinês. Por esse motivo, ele é reverenciado como um herói nacional. Nos Estados Unidos, onde estudou e trabalhou durante mais de uma década, as importantes contribuições de Qian raramente foram reconhecidas. O caso dele ganhou destaque em veículos de comunicação como o New York Times nos últimos dias, em meio à política de expulsão de imigrantes do presidente Donald Trump. No dia 28 de maio, o secretário de Estado Marco Rubio anunciou que o governo trabalharia para “revogar agressivamente” os vistos de estudantes chineses, incluindo aqueles ligados ao Partido Comunista ou que estudam em “áreas críticas”.
Os riscos de expulsar, em vez de acolher, talentos como Qian já cobraram seu preço da superpotência anteriormente.
Será que os Estados Unidos poderiam tropeçar novamente e se livrar de figuras tão brilhantes como esse cientista chinês — e repetir aquilo que é conhecido como um dos piores erros da história do país?

Qian nasceu em 1911, quando a última dinastia imperial da China estava prestes a ser substituída por uma República. O pai dele, depois de trabalhar no Japão, estabeleceu o sistema educacional nacional da China. Era evidente desde cedo que Qian tinha muitos talentos. Ele se graduou como o primeiro da turma na Universidade Jiao Tong de Xangai e ganhou uma rara bolsa de estudos no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês), nos Estados Unidos.
Em 1935, chegava a Boston um jovem elegante e bem vestido. Qian pode ter enfrentado demonstrações de xenofobia e racismo, diz Chris Jespersen, professor de história da Universidade do Norte da Geórgia, nos EUA. Mas havia “também um sentimento de esperança e crença de que a China (estava) mudando de modo realmente significativo”. Do MIT, Qian foi para o Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech) para estudar com um dos mais influentes engenheiros aeronáuticos da época, o húngaro Theodore von Karman. Ali, Qian dividia o escritório com outro proeminente cientista, Frank Malina, membro-chave de um pequeno grupo de inovadores conhecido como “Esquadrão Suicida”. O grupo ganhou esse apelido por causa de suas tentativas de construir um foguete no campus, e também porque algumas das suas experiências com produtos químicos voláteis deram bastante errado, explica Fraser Macdonald, autor de Escape from Earth: A Secret History of the Space Rocket (“Fuga da Terra: A História Secreta do Foguete Espacial”, em tradução literal).
“Mas ninguém chegou a morrer, assinala o autor”.
Um certo dia, Qian foi atraído para uma discussão de um problema matemático complicado com Malina e outros membros do grupo, e em pouco tempo ele se tornou parte da equipa, produzindo pesquisas seminais sobre a propulsão de foguetes. Na altura, a ciência de foguetes era “coisa de excêntricos e sonhadores”, diz Macdonald. “Ninguém levava isso a sério, e nenhum engenheiro com inclinação matemática arriscaria sua reputação dizendo que aquilo seria o futuro.
Mas isso mudou rapidamente com o início da Segunda Guerra Mundial (1939-45). O Esquadrão Suicida logo atraiu a atenção dos militares americanos, que financiaram pesquisas sobre descolagem assistida por jato, onde propulsores foram acoplados às asas das aeronaves para permitir que decolassem em pistas curtas.

O financiamento militar também ajudou a estabelecer o Laboratório de Propulsão a Jato (JPL, na sigla em inglês) em 1943, sob a direção de Theodore von Karman. Qian, juntamente com Frank Malina, estava no centro do projeto. Qian era um cidadão chinês, mas a República da China era aliada dos EUA, então não havia “nenhuma suspeita concreta sobre um cientista chinês no centro do empreendimento espacial americano”, afirma Macdonald. Ele recebeu autorização de segurança para trabalhar na pesquisa de armas sigilosas e até serviu no Conselho Consultivo de Ciência do governo americano. No final da guerra, ele era um dos maiores especialistas do mundo em propulsão a jato e foi enviado com Von Karman numa missão extraordinária para a Alemanha, ocupando o posto temporário de tenente-coronel. O objetivo era entrevistar engenheiros nazistas, incluindo Wernher von Braun, o principal cientista de foguetes da Alemanha. Os EUA queriam descobrir exatamente o que os alemães sabiam. Mas, no final da década, a brilhante carreira de Qian nos EUA foi interrompida repentinamente e sua a vida lá começou a se complicar. Na China, o líder Mao Tsé-Tung declarou a criação da República Popular comunista em 1949, e rapidamente os chineses passaram a ser vistos nos EUA como “os malvados”, afirma Jespersen, da Universidade do Norte da Geórgia. Entretanto, um novo diretor do JPL passou a acreditar que havia uma rede de espiões no laboratório e compartilhou suas suspeitas sobre alguns membros da equipa com o FBI (a polícia federal americana). “Todos eram chineses ou judeus”, diz Macdonald. A Guerra Fria entre EUA e União Soviética estava em curso, e a caça às bruxas anticomunista da era McCarthy ganhava força. Foi nessa atmosfera que o FBI acusou Qian, Frank Malina e outros de serem comunistas e de serem uma ameaça à segurança nacional.
As acusações contra Qian foram baseadas num documento de 1938 do Partido Comunista dos EUA, que mostrava que ele participara de uma reunião social que o FBI suspeitava ser uma reunião do Partido Comunista de Pasadena.

Embora Qian negasse ser membro do partido, um novo estudo sugeriu que ele ingressou na mesma época que Frank Malina, em 1938. Mas isso não o torna necessariamente um marxista. Ser comunista naquela época era uma declaração de antirracismo, explica Macdonald. O grupo queria destacar a ameaça do fascismo, diz o especialista, bem como o horror do racismo nos EUA.
Eles faziam campanha, por exemplo, contra a segregação da piscina local de Pasadena e usaram as reuniões comunistas para discuti-la.
Zuoyue Wang, professor de história da Universidade Politécnica do Estado da Califórnia, nos EUA, diz que não há qualquer evidência de que Qian tenha feito espionagem para a China ou tenha sido agente de inteligência quando esteve nos Estados Unidos.
Ele foi, no entanto, privado de sua autorização de segurança e colocado em prisão domiciliar. Os colegas do Caltech, incluindo Theodore von Karman, escreveram ao governo para defender a inocência de Qian, mas sem sucesso. Em 1955, após cinco anos de prisão domiciliar, o presidente Eisenhower tomou a decisão de deportá-lo para a China. O cientista partiu de barco com sua mulher e dois filhos nascidos nos EUA, dizendo a jornalistas que nunca mais pisaria nos EUA. E manteve sua promessa. “Ele foi um dos cientistas mais ilustres dos EUA. Ele contribuiu muito e poderia ter contribuído muito mais. Portanto, não foi apenas humilhação, mas também um sentimento de traição”, afirma o jornalista e escritor Tianyu Fang.

Qian chegou como herói à China, mas não foi imediatamente admitido no Partido Comunista. Seu histórico não era impecável. Sua esposa era a filha aristocrática de um líder nacionalista e, até a queda de Qian em desgraça, ele vivia feliz nos EUA. O cientista havia dado até os primeiros passos para solicitar a cidadania americana. Quando finalmente se tornou membro do Partido Comunista Chinês, em 1958, ele o abraçou e, partir dali, tentou sempre permanecer do lado certo do regime. Ele sobreviveu aos expurgos e à Revolução Cultural, e conseguir dar seguimento a uma carreira extraordinária. Quando chegou à China, havia pouco conhecimento da ciência de foguetes, mas 15 anos depois ele supervisionaria o lançamento do primeiro satélite chinês ao espaço. Ao longo das décadas, ele treinou uma nova geração de cientistas e seu trabalho lançou as bases para o Programa de Exploração Lunar da China. Ironicamente, o programa de mísseis que Qian ajudou a desenvolver na China resultou em armas que foram disparadas contra os EUA. Os mísseis bicho-da-seda (silkworm) desenvolvidos por Qian foram disparados contra americanos na Guerra do Golfo de 1991 e em 2016 contra o navio de guerra USS Mason por rebeldes houthis no Iêmen. Ao adotar uma linha dura contra o comunismo doméstico, afirma Macdonald, o país deportou “os meios pelos quais um de seus principais rivais comunistas poderia desenvolver seus próprios mísseis e seu programa espacial. Foi um erro geopolítico extraordinário.”
“Há um ciclo estranho. Os EUA expulsaram essa expertise e ela voltou para mordê-los”, observa ela.
Um ex-secretário da Marinha dos EUA, Dan Kimball, que mais tarde seria chefe da empresa de propulsão de foguetes Aerojet, disse uma vez que a deportação de Qian foi “a coisa mais estúpida que este país já fez”.

Hoje, há novamente uma enorme tensão entre a China e os EUA. Desta vez, não se trata de ideologia, mas de comércio, segurança tecnológica e, segundo Trump, uma suposta falha da China em conter o espalhamento da covid-19. Embora a maioria dos americanos não tenha noção da história de Qian e de seu papel no programa espacial americano, Tianyu Fang diz que muitos chineses e estudantes chineses nos EUA sabem sobre o cientista e por que teve que sair do país, e eles veem os paralelos com os dias atuais.
“As relações entre os EUA e a China pioraram tanto que eles sabem que podem estar sob as mesmas suspeitas que a geração de Qian”, compara o jornalista.
Na visão de Macdonald, a história de Qian é um alerta sobre o que acontece quando você expulsa o conhecimento.
“A história da Ciência americana mostra que ela é impulsionada por pessoas vindas de fora… Mas nestes tempos conservadores, essa é uma história que se torna mais difícil de ser celebrada.”
A contribuição do Laboratório de Propulsão a Jato para o programa espacial dos EUA foi, acredita Macdonald, bastante negligenciada em relação à de Wernher von Braun e de outros cientistas alemães, que foram levados em segredo aos EUA logo após a visita que Von Karman e Qian fizeram a eles.
Braun era nazista, mas suas conquistas são reconhecidas de uma forma que as de Qian e outros do Esquadrão Suicida não são, diz Macdonald.

“A ideia de que o primeiro programa espacial viável dos EUA foi iniciado por socialistas locais, sejam judeus ou chineses, não é realmente uma história que os EUA possam ouvir sobre si mesmos”, diz ele.

Resumo
- 1 A vida de Qian durou quase um século
- 2 O maior recolher obrigatório do Mundo
- 3 Irmã Cecília
- 4 Mais polícia na rua e monitorização dos grupos extremistas é prioridade para o Governo
- 5 Características, Avaliação e Tratamento Coronavírus (COVID-19). Parte 4
- 6 Características, Avaliação e Tratamento Coronavírus (COVID-19). Parte 3
A vida de Qian durou quase um século

No período, a China cresceu de um peixinho económico para uma superpotência na Terra e no espaço.

Qian fez parte dessa transformação. Mas a sua história poderia ter sido uma grande história americana também.

Em 2019, quando a China conseguiu o feito de pousar no outro lado da Lua, e o fez na cratera Von Karman – nome dado em homenagem ao engenheiro aeronáutico que foi um dos mentores de Qian.

Um aceno, proposital ou não, para o fato de que o anticomunismo americano ajudou a impulsionar a China no espaço.

jOSé caLEIro MMH – Créditos – BBC
Share this content: